Mente e coração

Entretanto, os fariseus, sabendo que ele fizera calar os saduceus, reuniram-se em conselho. E um deles, intérprete da Lei, experimentando-o, lhe perguntou: Mestre, qual é o grande mandamento na Lei? Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento – Mt 22.34 a 38

Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus – Rm 12.1 e 2

 

INTRODUÇÃO:

Algumas observações sobre os textos citados:

  1. Textos fartamente conhecidos.
  2. Parece óbvio, por isso necessário de ser enfatizado novamente.
  3. Os textos integram dimensões que deveriam andar juntas (entendimento e afeição), mas lamentavelmente são dissociadas constantemente.

Há, no contexto evangélico brasileiro, uma confusão entre dimensão intelectual e afetiva da fé cristã. Em função disso há cristãos que pensam que não devem estudar e outros que acreditam que o que importa é fazer uma boa formulação de fé, sem dar importância alguma à dimensão afetiva da fé cristã.

TESE:

Deus não requer de nós uma devoção ignorante, ele quer ser amado por seres inteligentes que o adorem com compreensão e sincera afeição.

 

  • CRER É TAMBÉM PENSAR

Um líder cristão do século II, Tertuliano de Cartago, afirmou:

Porque é absurdo creio.

Agostinho, outro líder cristão de Cartago, alguns séculos depois, discordava dele. Para Agostinho uma das dádivas de Deus à humanidade é a capacidade de pensar por si mesma. A essa dádiva Agostinho chamava iluminação.

Nesta lamentável inquietação dos espíritos decaídos, que, despidos da veste de tua luz, manifestam as próprias trevas, mostras claramente a grandeza de tua criatura racional; na busca

da felicidade, ela só se sacia com tua grandeza, onde encontra repouso – pois que ela não pode bastar-se a si própria. Porque tu, Senhor, iluminarás nossas trevas. De ti vêm nossas vestes de

luz, e nossas trevas serão como o sol do meio-dia. (Confissões – Livro VIII)

É na luz de Deus que vemos a luz:

Pois em ti está o manancial da vida; na tua luz, vemos a luz – Sl 36.9

FATOS A CONSIDERAR:

Jesus é a luz que vindo ao mundo ilumina todo homem:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela. Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João. Este veio como testemunha para que testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele. Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz, a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem – Jo 1.1 a 9

Moisés foi o porta-voz de Deus e comunicou a nós a instrução (Torah) de Deus. Jesus veio completar a revelação dado por Deus a Moisés e os profetas. Essa revelação complementar chamamos de Evangelho:

Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo – Jo 1.17

Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo. Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas, tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que eles – Hb 1.1 a 4

Jesus é a fiel testemunha dos desígnios de Deus. Os apóstolos ouviram o Evangelho pregado e demonstrado por Jesus Cristo e escreveram seus testemunhos:

Porque não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo seguindo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade, pois ele recebeu, da parte de Deus Pai, honra e glória, quando pela Glória Excelsa lhe foi enviada a seguinte voz: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo. Ora, esta voz, vinda do céu, nós a ouvimos quando estávamos com ele no monte santo – 2Pe 1.16 a 18

 

  • DEUS COMO OBJETO LEGÍTIMO DE CONHECIMENTO

Há muitos objetos legítimos de nosso conhecimento. Dentre todos o conhecimento de Deus é o mais excelente.

Todo cristão deveria esforçar-se conscientemente por crescer no conhecimento de Deus – Jonathan Edwards no sermão: The Importance and Advantage of a Thorough Knowledge of Divine Truth.

Devemos conhecer a Deus:

Conheçamos e prossigamos em conhecer ao SENHOR; como a alva, a sua vinda é certa; e ele descerá sobre nós como a chuva, como chuva serôdia que rega a terra – Os 6.3

Assim diz o SENHOR: Não se glorie o sábio na sua sabedoria, nem o forte, na sua força, nem o rico, nas suas riquezas; mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o SENHOR e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o SENHOR – Jr 9.23 e 24

Vós, pois, amados, […] crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno – 2Pe 3.17 e 18 (editado)

Nosso crescimento no conhecimento de Deus deve ser acompanhado de um crescimento no conhecimento de outras áreas importantes da vida. O cristão deve ser uma pessoa esclarecida e contextualizada.

Deus se deu e se dá a conhecer constantemente:

O conhecimento de Deus e de tudo mais relacionado a Deus e à vida só é possível porque Deus se revelou a nós e nos concedeu a capacidade de conhecê-lo nas Escrituras e percebê-lo por meio das coisas criadas.

A criação toda é o mais belo livro da Bíblia, onde Deus se inscreveu e desenhou – Martinho Lutero

Nossa mente está habilitada a conhecer a Deus tanto quanto Deus pode ser conhecido:

Deus que é inteligente nos fez à sua imagem e semelhança e jamais pedirá que coloquemos nossa cabeça na guilhotina da ignorância.

O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais; de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação; para buscarem a Deus se, porventura, tateando, o possam achar, bem que não está longe de cada um de nós; pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração – At 17.24 a 28

Não é por não poder conhecer a Deus plenamente que devemos desistir de querer conhecê-lo cada vez mais:

É fato que jamais poderemos conhecer a Deus plenamente, porém podemos conhecer dele o que nos é permitido conhecer, dentro de nossa limitada capacidade cognitiva há muito o que conhecer sobre Deus e tudo que está relacionado a esse conhecimento:

  • O conhecimento de nós mesmos
  • O conhecimento do outro por reflexo
  • O conhecimento do mundo que nos rodeia
  • O conhecimento do bem e do mal

O nível de conhecimento que temos de Deus e das coisas relacionadas a Deus diz muito sobre nós:

A intimidade do SENHOR é para os que o temem, aos quais ele dará a conhecer a sua aliança – Sl 25.14

O SENHOR […] manifestou os seus caminhos a Moisés e os seus feitos aos filhos de Israel – Sl 103.6 e 7 (editado)

A FÉ CRISTÃ É UMA FÉ EM BUSCA DE COMPREENSÃO:

Engana-se quem pensa que fé cristã e ignorância andam juntas:

A fé não consiste na ignorância, senão no conhecimento; e este conhecimento há de ser não somente de Deus, senão também de sua divina vontade – João Calvino

Sendo um ardoroso defensor do livre exame das Escrituras e do desenvolvimento intelectual de todo cristão Martinho Lutero, o Reformador, lutou bravamente por traduzir o Novo Testamento para o alemão a fim de que seu povo saísse da mais grosseira ignorância em que foi deixado pela cúpula romana.

O cristão deve ser esclarecido:

…antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo – 1Pe 3.15 e 16

Nossa devoção a Deus deve ser uma expressão inteligente de pessoas esclarecidas e lúcidas.

Um chamado ao bom senso – o caso Corinto:

Porque, se eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera. Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente. E, se tu bendisseres apenas em espírito, como dirá o indouto o amém depois da tua ação de graças? Visto que não entende o que dizes; porque tu, de fato, dás bem as graças, mas o outro não é edificado. Dou graças a Deus, porque falo em outras línguas mais do que todos vós. Contudo, prefiro falar na igreja cinco palavras com o meu entendimento, para instruir outros, a falar dez mil palavras em outra língua. Irmãos, não sejais meninos no juízo; na malícia, sim, sede crianças; quanto ao juízo, sede homens amadurecidos. Na lei está escrito: Falarei a este povo por homens de outras línguas e por lábios de outros povos, e nem assim me ouvirão, diz o Senhor. De sorte que as línguas constituem um sinal não para os crentes, mas para os incrédulos; mas a profecia não é para os incrédulos, e sim para os que creem. Se, pois, toda a igreja se reunir no mesmo lugar, e todos se puserem a falar em outras línguas, no caso de entrarem indoutos ou incrédulos, não dirão, porventura, que estais loucos? Porém, se todos profetizarem, e entrar algum incrédulo ou indouto, é ele por todos convencido e por todos julgado; tornam-se-lhe manifestos os segredos do coração, e, assim, prostrando-se com a face em terra, adorará a Deus, testemunhando que Deus está, de fato, no meio de vós – 1Co 14.14 a 25

Não devemos aderir às práticas evangélicas bizarras de muitas igrejas evangélicas brasileiras, e sim, nos opor a identificar essas coisas como sendo legitimamente cristãs.

 

  • DEUS COMO OBJETO LEGÍTIMO DE NOSSAS AFEIÇÕES

Além de conhecer a Deus, também podemos e devemos amá-lo. Se o conhecermos tanto quanto ele pode ser conhecido por nós certamente o amaremos como ele deseja ser amado.

O Deus das Escrituras é um ser pessoal:

Deus é o eterno “Eu Sou”:

Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós outros – Êx 3.14

Toda pessoalidade deriva do Deus pessoal:

Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra. Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou – Gn 1.26 e 27

Deus é luz e amor:

Ora, a mensagem que, da parte dele, temos ouvido e vos anunciamos é esta: que Deus é luz, e não há nele treva nenhuma. […] Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor – 1Jo 1.5 e 4.7 e 8

Deus que é luz, como luz do sol, ilumina e aquece. Há em Deus luz que ilumina as trevas e calor que aquece o mais frio coração humano. O amor de Deus traz salvação e inunda o coração do homem de amor e paz.

O Deus das Escrituras se relaciona conosco:

O Deus que é “Eu Sou” se relaciona. Ele é o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó:

Disse Deus ainda mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: O SENHOR, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, me enviou a vós outros; este é o meu nome eternamente, e assim serei lembrado de geração em geração – Êx 3.15

A dimensão relacional é a mais sublime dimensão da existência humana. Jesus é o Verbo encanado, cheio de graça e verdade:

E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai – Jo 1.14

Jonathan Edwards escreveu:

O que motivou Deus a fazer de si mesmo o fim principal para o qual criou o mundo foi seu supremo amor por suas perfeições e virtudes. Ele se deleita em usá-las e se deleita no genuíno efeito do uso delas. Ele tem prazer em comunicar estas virtudes e perfeições. Ele as comunica na intenção de vê-las reproduzidas nos seres inteligentes e morais. Esta santa propensão em Deus pode ser encarada com uma propensão à autodifusão, como o sol que difunde sua luz que é refletida por um cristal. A luz que é difundida e a luz refletida são as mesmas, a diferença está no grau superior da difusão em relação à reflexão. (Edwards – The End of Creation)

A prática cristã implica em ações de amor a Deus e aos homens. O amor a Deus é um amor desinteressado e envolve atos de adoração e deveres religiosos, tais como frequência às reuniões religiosas, participação na ceia do Senhor, honra a Deus, louvores e santas conversações. Com relação ao amor aos homens, ele fala de deveres morais, comportamento exemplar, autorrenúncia, justiça, mansidão e amor cristão. (Edwards – The Nature of True Virtue)

O Deus das Escrituras requer que os seres racionais o amem de todo coração e mente:

Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR. Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força – Dt 6.4 e 5

Uma vez que toda santidade consiste em amor supremo a Deus, o amor que Deus tem por si mesmo é perfeitamente santo e isento de qualquer desonra. A própria santidade de Deus deve consistir nisto também. Deus ama a santidade em suas criaturas porque ama a sua própria santidade. Uma vez que há no amor de Deus por si mesmo infinita graça e condescendência, ele não é impróprio a Deus, e sim infinitamente honroso e glorioso. (Edwards – The End of Creation)

O Deus das Escrituras requer que os seres racionais ofereçam a ele um culto racional:

Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus – Rm 12.1 e 2

Não se trata de intelecto ou afeição, e sim, de intelecto e afeição andando juntos na adoração e devoção da vida a Deus.

 

A FÉ CRISTÃ É UMA MANIFESTAÇÃO DE AFEIÇÕES LEGÍTIMAS:

Por esta divina influência, os santos exibem uma agradável simetria no exercício das santas afeições religiosas. Eles não são mais santos num lugar que noutro, nem diante de um grupo mais do que de outro. Eles amam os homens, seus corpos e suas almas. Amam a cada pessoa como se fossem todos os homens ali representados. Há neles alegria e santo choro, prazer nas coisas de Deus e tristeza por não poderem ser mais diligentes em seus deveres diante de Deus e dos homens. Sendo a santidade um cordial consentimento do coração dos santos ao coração de Deus, a obra que o Espírito produz no coração deles é da mesma natureza das verdadeiras virtudes. O amor benevolente e complacente, aquele amor supremo devido a Deus, é tornado possível pelo gracioso princípio de vida que flui do Espírito de Deus para os santos, numa espécie de autocomunicação.

Nosso amor por Deus deve conduzir-nos a nos alegra nele, a sermos fervorosos no espírito e plenos do amor divino que nos levará a nos expressar por meio de demonstrações afetivas e emotivas.

As ações, as reações, as emoções, as intenções e as afeições dos santos são todos julgados a partir da finalidade a que eles se destinam. Porque a glória de Deus está em vista, tudo o que os santos fazem produzirá neles mais santidade. Eles glorificam a Deus por refletirem a santidade de Deus neles.

 

CONCLUSÃO

A verdadeira vida cristã é:

  • Esclarecida e esclarecedora porque valoriza o conhecimento de Deus e de tudo que a Deus se relaciona.
  • Cheia de amor, misericórdia, paixão e compaixão, fervor, lágrimas e santo riso.

 

ORAÇÃO:

Que Deus nos ajude a sermos como Jesus que conhecia a Deus e viveu cheio de amor e graça. Nele se encontra a plenitude da verdade e da graça de Deus – Jo 1.14. Amém

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