E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos. Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos – At 2.42 a 47
INTRODUÇÃO:
Quando o assunto é comunhão, invariavelmente nos lembramos desses versículos citados acima. Tal lembrança é justa. No entanto o que se percebe é que um elemento muito importante é deixado de fora na consideração do assunto:
Singeleza de coração – ἀφελότητι καρδίας – verso 46
O termo indica maciez, simplicidade, ausência de aspereza – como uma pedra lisa – ser de mente simples. O antônimo de singeleza é complexidade.
Os cristãos primitivos podiam ter comunhão entre eles porque tinham um coração simples, aberto, sem complexidades.
Paulo temia que os cristãos de Corinto perdessem de vista a simplicidade que há em Cristo:
Mas receio que, assim como a serpente enganou a Eva com a sua astúcia, assim também seja corrompida a vossa mente e se aparte da simplicidade e pureza devidas a Cristo – 2Co 11.3
A comunhão cristã é com o Pai, com o Filho e entre os filhos, no Espírito:
… o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros, para que vós, igualmente, mantenhais comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo – 1Jo 1.3
Se há, pois, alguma exortação em Cristo, alguma consolação de amor, alguma comunhão do Espírito, se há entranhados afetos e misericórdias, completai a minha alegria, de modo que penseis a mesma coisa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o mesmo sentimento – Fp 2.1 e 2
Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados, com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor, esforçando-vos diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz; há somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos – Ef 4.1 a 6
Na parábola do pai – Lc 15.11 a 32 nós temos 3 exemplos que nos mostram o que impede e o que torna possível a comunhão.
O contexto do texto:
Aproximavam-se de Jesus todos os publicanos e pecadores para o ouvir. E murmuravam os fariseus e os escribas, dizendo: Este recebe pecadores e come com eles – Lc 15.1 e 2
O que impede a comunhão?
- A COMPLEXIDADE MUNDANA EXEMPLIFICADA NA PESSOA DO FILHO MAIS NOVO
- A COMPLEXIDADE RELIGIOSA EXEMPLIFICADA NA PESSOA DO FILHO MAIS VELHO
O que torna possível a comunhão:
A SINGELEZA DO CORAÇÃO DO PAI
- A COMPLEXIDADE MUNDANA
O filho mais novo deixou a casa paterna por acreditar que encontraria felicidade na comunhão mundana.
Ele certamente buscava ser amado, poder amar livremente e ser amado da mesma forma. Mas isso está fora de cogitação na complexidade mundana.
Ele percebeu que estava muito enganado, ele não conhecia a complexidade mundana da terra distante.
- O que você tem importa mais do que o que você é
- Utilitarismo antigo e moderno
O utilitarismo antigo afirmava que o prazer é o sumo bem e que tudo deve ser empregado no objetivo de se obter o maior prazer possível da vida.
O utilitarismo moderno se vale de mecanismo semelhantes mas é mais sofistica ainda porque vê nas coisas e nas pessoas meios para se alcançar o fim supremo – a felicidade – mas uma felicidade egocêntrica e desprovida de compaixão, objetizante e cruel.
Há na terra distante uma busca incansável por realização pessoal e felicidade.
- Os moradores da terra distante são capazes de fazer qualquer coisa para se realizarem.
- Eles pensam e agem movidos por egoísmo.
- Eles querem ter vantagem em tudo.
- Confusão de meios e fins
Os moradores da terra distante costumem confundir meios com fins. Eles amam o que deveria ser usado e usa o que deveria ser amado. Eles amam coisas e usam pessoas para obter coisas.
- Comunhão anímica – Comunhão movida por afinidades
Dietrich Bonheffer em seu livro Vida em Comunhão afirma que há um tipo de comunhão que se baseia na presença ou ausência de afinidades – a comunhão anímica.
Essa comunhão é imediata, se estabelece e se mantém na medida em que os “comungantes” permanecem fiéis às preferências do grupo.
- Comunhão fabricada com feição eventual
A comunhão anímica é criada pelos “comungantes” e se alimenta de eventos organizados com o intuito de não deixar a “comunhão” se esfriar.
A necessidade é o teste cabal para a comunhão anímica da complexidade mundana da terra distante.
Os “amigos” da terra distante desaparecem quando você cai em necessidade:
Depois de ter consumido tudo, sobreveio àquele país uma grande fome, e ele começou a passar necessidade. Então, ele foi e se agregou a um dos cidadãos daquela terra, e este o mandou para os seus campos a guardar porcos. Ali, desejava ele fartar-se das alfarrobas que os porcos comiam; mas ninguém lhe dava nada – Lc 15.14 a 16
A complexidade mundana, com seu apelo utilitarista, egoísta e fortemente eventual impede que a comunhão seja autêntica, simples e sincera.
Não há vida na complexidade mundana – sempre haverá “duas pulgas e nenhum cachorro”.
Enquanto esteve iludido com a possibilidade da comunhão na terra distante, o filho mais novo esteve cativo à complexidade mundana e não conseguiu ter comunhão com o pai.
- A COMPLEXIDADE RELIGIOSA
O filho mais velho, embora vivesse debaixo do mesmo teto do pai seu coração batia noutro compasso.
O filho mais velho era legalista, frio, calculista e insensível.
- Regras sobre regras
Aos desobedientes de seus dias Isaías profetizou:
Assim, pois, a palavra do SENHOR lhes será preceito sobre preceito, preceito e mais preceito; regra sobre regra, regra e mais regra; um pouco aqui, um pouco ali; para que vão, e caiam para trás, e se quebrantem, se enlacem, e sejam presos – Isaías 28.13
Porque:
O Senhor disse: Visto que este povo se aproxima de mim e com a sua boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim, e o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu – Is 29.13
Jesus usou o mesmo texto para repreender os líderes religiosos de Israel:
Então, vieram de Jerusalém a Jesus alguns fariseus e escribas e perguntaram: Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos, quando comem. Ele, porém, lhes respondeu: Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? […] Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens – Mt 15.1 a 9 (editado)
A complexidade religiosa despreza a lei de Deus, fundamentada na sua justiça e misericórdia e no lugar dela cria “doutrinas que são preceitos de homens”.
Boa parte da igreja evangélica brasileira é legalista e dá grande valor a “preceitos de homens”. Para cada mandamento proibitivo que afetam os homens há outros dez que afetam as mulheres. Até as crianças são vítimas de regras que lhes inibe a liberdade de serem crianças.
- Justiça própria
A complexidade religiosa se alimenta de uma ilusão – a justiça própria:
Propôs também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar: um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano; jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será humilhado; mas o que se humilha será exaltado – Lc 18.9 a 14
Isaías descartou qualquer possibilidade de Deus levar em conta nossos atos de justiça:
Sais ao encontro daquele que com alegria pratica justiça, daqueles que se lembram de ti nos teus caminhos; eis que te iraste, porque pecamos; por muito tempo temos pecado e havemos de ser salvos? Mas todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; todos nós murchamos como a folha, e as nossas iniquidades, como um vento, nos arrebatam. Já ninguém há que invoque o teu nome, que se desperte e te detenha; porque escondes de nós o rosto e nos consomes por causa das nossas iniquidades – Is 64.5 a 7
Paulo foi categórico:
Porque Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos – Rm 11.32
Ninguém poderá alegar diante de Deus que possui justiça própria.
O reconhecimento da verdade da graça de Deus nos torna mais suscetíveis de aceitar o outro que foi igualmente aceito por Deus de forma graciosa.
- Comunhão anímica – credal, ritual e superficial
O tipo de comunhão que as pessoas de mentalidade religiosa complexa desenvolvem é igualmente anímica.
- Para elas o que importa é que você creia exatamente como eles crêem.
- Elas valorizam excessivamente os ritos da religião. Se você quer ter comunhão com eles você precisa seguir à risca os procedimentos ritualísticos que eles observam.
- Elas valorizam as exterioridades e por isso costumam ser superficiais em tudo. Palavras e ações não procedem do coração, no máximo procedem de uma mente arguta e sagaz.
A compaixão é o teste cabal para a comunhão anímica da complexidade religiosa do filho mais velho.
O coração do filho mais velho desconhece o que é compaixão e misericórdia:
Partindo Jesus dali, viu um homem chamado Mateus sentado na coletoria e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu. E sucedeu que, estando ele em casa, à mesa, muitos publicanos e pecadores vieram e tomaram lugares com Jesus e seus discípulos. Ora, vendo isto, os fariseus perguntavam aos discípulos: Por que come o vosso Mestre com os publicanos e pecadores? Mas Jesus, ouvindo, disse: Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos; pois não vim chamar justos, e sim pecadores [ao arrependimento] – Mt 9.9 a 13
E também:
Por aquele tempo, em dia de sábado, passou Jesus pelas searas. Ora, estando os seus discípulos com fome, entraram a colher espigas e a comer. Os fariseus, porém, vendo isso, disseram-lhe: Eis que os teus discípulos fazem o que não é lícito fazer em dia de sábado. Mas Jesus lhes disse: Não lestes o que fez Davi quando ele e seus companheiros tiveram fome? Como entrou na Casa de Deus, e comeram os pães da proposição, os quais não lhes era lícito comer, nem a ele nem aos que com ele estavam, mas exclusivamente aos sacerdotes? Ou não lestes na Lei que, aos sábados, os sacerdotes no templo violam o sábado e ficam sem culpa? Pois eu vos digo: aqui está quem é maior que o templo. Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos, não teríeis condenado inocentes – Mt 12.1 a 7
AS RAZÕES NÃO-RAZOÁVEIS DO FILHO MAIS VELHO:
Mas ele respondeu a seu pai: Há tantos anos que te sirvo sem jamais transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito sequer para alegrar-me com os meus amigos; vindo, porém, esse teu filho, que desperdiçou os teus bens com meretrizes, tu mandaste matar para ele o novilho cevado – Lc 15.29 e 30
O filho mais velho preferia que o bezerro cevado estivesse vivo e o irmão morto.
O filho mais velho se nega a reconhecer que o outro seja mesmo seu irmão.
O filho mais velho acusa e se acusa. Ao dizer que seu irmão gastou o dinheiro com prostitutas, no fundo ele estava dizendo o que ele faria se tivesse a coragem do irmão mais novo.
O filho mais velho se nega a se alegrar com o retorno do irmão mais novo à casa do pai.
Enquanto o filho mais velho continuar iludido pela complexidade religiosa ele jamais terá comunhão com o seu pai e seu irmão.
- A SINGELEZA DO CORAÇÃO DO PAI
A singeleza do pai se vê em suas ações e palavras:
- a) O pai deixa o filho fazer o que deseja fazer, apesar de saber a que resultado iria chegar:
Continuou: Certo homem tinha dois filhos; o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte dos bens que me cabe. E ele lhes repartiu os haveres – Lc 15.11 e 12
O pai aceita ser rejeitado. Nas mentalidades complexas mundanas e religiosas não há espaço para a rejeição. Se você rejeitar, será imediatamente rejeitado. Se você não se submeter ao sistema mundano ou religioso você se torna um pária, um intocável e sofrerá o castigo que o mundo e a religião impiedosa destina aos infiéis e traidores.
Mas o pai aceita que foi rejeitado. Ele não pune o ofensor, ele atende ao seu pedido e lha reparte os haveres.
- b) O pai perdoa e acolhe o filho arrependido:
Vinha ele ainda longe, quando seu pai o avistou, e, compadecido dele, correndo, o abraçou, e beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. O pai, porém, disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa, vesti-o, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés; trazei também e matai o novilho cevado. Comamos e regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. E começaram a regozijar-se – Lc 15.20b a 24
A ofensa foi perdoada e esquecida imediatamente assim que o filho foi avistado pelo pai. O pai tinha esperança de que o filho mais novo se decepcionasse com a terra distante e voltasse à casa do pai. Ao ver sua esperança se concretizar ele não hesita em correr ao encontro do filho arrependido.
- O coração singelo do pai o leva a calar os argumentos erráticos do filho.
- O coração singelo do pai restaura o filho ao seu antigo status imediatamente.
- O coração singelo do pai cobre a desonra do filho com as melhores vestes.
- O coração singelo do pai o leva a restabelecer a aliança paterno-filial imediatamente.
- O coração singelo do pai valoriza o filho e sacrifica o bezerro cevado.
- O coração singelo do pai faz festa com o retorno do filho perdido.
- c) O pai insiste com o filho mais velho a que tenha um coração compassivo como o seu:
AS RAZÕES RAZOÁVEIS DO PAI:
Então, lhe respondeu o pai: Meu filho, tu sempre estás comigo; tudo o que é meu é teu. Entretanto, era preciso que nos regozijássemos e nos alegrássemos, porque esse teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado – Lc 15.31 e 32
O filho mais velho era um privilegiado que não sabia de seu real status.
O filho mais velho vivia com o pai, mas não tinha comunhão com o pai porque tinha um coração complexo.
O filho mais velho era calculista e não usava o coração para orientar sua mente.
O filho mais velho tinha motivos de sobra para ser e estar feliz, mas seu coração dominado pela complexidade religiosa o impedia de ter comunhão com o seu pai e seu irmão e alegrar-se com os que se alegram.
CONCLUSÃO:
Deixemos de lado a complexidade mundana.
Deixemos de lado a complexidade religiosa.
Tenhamos o mesmo coração singelo do Pai, do Filho e do Espírito Santo.