Não amem o mundo

Não amem o mundo nem o que nele há. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo — a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens — não provém do Pai, mas do mundo. O mundo e a sua cobiça passam, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre – 1Jo 2.15 a 17

INTRODUÇÃO:

Perguntas:

  1. O que significa mundo para João?
  2. Como podemos amar o mundo?
  3. Por que não devemos amar o mundo?
  4. O que é “cobiça da carne”?
  5. O que é “cobiça dos olhos”?
  6. O que é “ostentação dos bens”?

O que é mundo?

No grego clássico o termo possuía duas conotações básicas e no texto bíblico três:

Quando nos voltamos dos Clássicos para os escritores do Novo Testamento, descobrimos que seus usos da palavra “kosmos” enquadram-se em três grupos principais. (1) É usada em primeiro lugar com o sentido de universo material, o mundo todo, esta terra. Assim: Atos 17.14 “o Deus que fez o mundo, e tudo o que nele existe”; Mt. 13.35 (e em outros lugares) “a criação do mundo”; João 1.10 “estava no mundo, e o mundo foi feito por intermédio dele”; Marcos 16.15 “Ide por todo o mundo”. (2) O segundo uso de kosmos é duplo. É usado como: (a) para os habitantes do mundo em frases como a de João 1.10 “o mundo não o conheceu”; 3.16 “Deus amou ao mundo de tal maneira”; 12.19 “eis aí vai o mundo após Ele”; 17.21 “para que o mundo creia”. (b) Uma ampliação desse uso conduz à idéia da raça inteira dos homens separados de Deus e assim hostís à causa de Cristo. Assim: Hb. 11.38 “homens dos quais o mundo não era digno”; João 14.17 “que o mundo não pode receber”; 14.27 “não vo-la dou como a dá o mundo”; 15:18 “se o mundo vos odeia…”. (3) Em terceiro lugar, descobrimos que kosmosé usada nas Escrituras para assuntos mundanos: todo o círculo de bens, talentos, riquezas, vantagens e prazeres mundanos que embora vazios e transitórios; excitam nossos desejos e nos afastam de Deus, sendo assim obstáculos à causa de Cristo. (Idem, p. 6)

 

I. O MUNDO DE DEUS E DOS HOMENS

O mundo é visto nas Escrituras sob três perspectivas:

  1. O mundo físico – a criação de Deus, incluindo a terra e o universo criado. Nesse conjunto se inclui a biodiversidade terrestre, os reinos mineral, vegetal e animal.
  2. O mundo dos homens – Inclui-se aí as atividades humanas – agricultura, comércio, cultura, artes, entretenimento, transportes, comunicação, governos, religião, ordenamentos civis, militares, ciência e tecnologia, etc.
  3. A sociedade hostil a Deus e seu reino – Uma espécie de super-estrutura que age à parte do mundo físico e do mundo dos homens estabelecendo e distorcendo valores dentro do contexto do mundo dos homens.

 

  • Exemplos do primeiro caso:

O mundo físico é composto de tudo aquilo que pode ser visto tanto o macro-cosmos – ou seja, os planetas, sistemas solares, galáxias, enfim, o universo como tal – como o micro-cosmos, o mundo não visível aos olhos, porém, passível de ser visto por potentes lentes microscópicas – os seres unicelulares, bactérias, vírus e também os átomos e seus componentes.

Deus é o Criador do mundo e seu dono:

Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem; pois foi ele quem fundou-a sobre os mares e firmou-a sobre as águas – Sl 24.1 e 2

O Deus que fez o mundo e tudo o que nele há é o Senhor do céu e da terra, e não habita em santuários feitos por mãos humanas – At 17.24

  • Exemplos do segundo caso:

O mundo dos homens é o habitat humano – ou seja, o lugar onde o ser humano vive, onde ele mora, trabalha, estuda, se diverte, age e reage. Uma escola, uma universidade são exemplos do mundo humano do saber; um hospital, uma indústria, uma loja são exemplos de lugares onde o ser humano trabalha; uma casa, apartamento, uma choupana são exemplos de lugares onde o ser humano mora. O trabalho, a ciência, a indústria, o turismo, os espaços artísticos como teatro, cinema; os meios de transportes e locomoção são exemplos do mundo dos homens.

Deus estabeleceu limites ao habitathumano:

De um só fez ele todos os povos, para que povoassem toda a terra, tendo determinado os tempos anteriormente estabelecidos e os lugares exatos em que deveriam habitar – At 17.26

  • Exemplos do terceiro caso:

O terceiro caso é como um parasita dos outros dois casos. A corrupção na atividade de extração dos minérios, a violência doméstica, os ilícitos no exercício de um emprego ou atividade comercial, a criação de leis que favoreçam um grupo em detrimento de outros, a criação de atividades artísticas que pervertam a moral e os bons costumes, o tráfico de drogas, a conivência policial com o crime, a produção de medicamentos que causam dependência e não produzem cura alguma, o tráfico de pessoas para o mercado de prostituição, a deep web e adark web, a exploração do trabalho infantil e análogo à escravidão, o terrorismo em suas múltiplas modalidades, a espionagem, indústria de fake news, são exemplos do terceiro caso.

Satanás é o príncipe desse mundo:

Chegou a hora de ser julgado este mundo; agora será expulso o príncipe deste mundo – Jo 12.31 (ver também 14.30 e 16.11)

Sabemos que somos de Deus e que o mundo todo está sob o poder do Maligno – 1Jo 5.19

Ele é o rebelde senhor deste mundo tenebroso:

Vistam toda a armadura de Deus, para poderem ficar firmes contra as ciladas do diabo, pois a nossa luta não é contra pessoas, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais – Ef 6.11 e 12

Ilustrando:

Digamos que dois homens – Pedro e João – resolvem abrir um lacticínio em sociedade. Eles contatam um agenciador – Tiago – que vai aos sítios da vizinhança do laticínio e compra o leite produzido pelas vacas desses sítios.  O pasto, as vacas e o leite são componentes do mundo criado por Deus – o primeiro caso. Os sitiantes, o agenciador e os sócios do laticínio, bem como as ordenhas mecânicas, o curral, os galões de leite, o caminhão de transporte, os tanques de processamento do leite, o dinheiro pago aos sitiantes, ao agenciador e aos funcionários do laticínio, etc., são componentes do mundo dos homens – o segundo caso. A água que o sitiante adicionou ao leite, o preço abaixo da tabela pago pelo agenciador, o combustível “batizado” que o dono do posto de gasolina colocou na bomba e no tanque do transportador, o ágio cobrado pelo agenciador na entrega do leite, os empregados sem registro no laticínio e o produto adicionado ao leite após a pasteurização são componentes do mundo parasita – o terceiro caso.

Watchman Nee em seu livro Não Ameis o Mundoesclarece:

Satanás está utilizando o mundo material, os homens do mundo, as coisas que estão no mundo, para finalmente liderar tudo no reino do anticristo. Naquela ocasião o sistema mundial terá alcançado seu apogeu; e naquela ocasião cada uma de suas unidades será revelada como sendo anticristã. (Nee, p. 8)

John Stott adverte:

O povo de Deus vive num mundo que é frequentemente inamistoso e, certas vezes, declaradamente hostil. Nós vivemos constantemente expostos à pressão para “entrar­mos na forma”. No entanto, através de toda a Escritura, somos exortados a uma firme não-conformação, e as ad­vertências para quem cede ao mundanismo são muito sérias. No Antigo Testamento o Senhor disse ao seu povo depois do êxodo: “Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Canaã, para a qual eu vos levo, nem andareis nos seus estatutos. Fareis segundo os meus juízos, e os meus es­tatutos guardareis…”  […] Foi a mesma coisa nos dias do Novo Testamento. A despeito dos mandamentos bem claros de Jesus — “Não vos assemelheis a eles” – e de Paulo – “Não vos conformeis com este mundo”, a constante tendência do povo de Deus era, e ainda é, com­portar-se “como os gentios” – até que nada mais parece distinguir a igreja do mundo, os cristãos dos não-cristãos, em convicções, valores e padrões. (John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo, p. 12)

Watchman Nee conclui:

Assim, salvação não é tanto uma questão pessoal de pecados perdoados ou inferno evitado. Precisa ser encarada mais em termos de um sistema do qual saímos. Quando sou salvo, faço meu êxodo de um mundo inteiro e minha entrada em um outro. Sou salvo agora de todo aquele império organizado que Satanás construiu em desafio ao propósito de Deus. Esse reino, o kosmosque tudo abrange, tem muitas entranhas. Naturalmente o pecado tem seu lugar prioritário ali, e as concupiscências mundanas; nossos mais estimados padrões humanos e meios de fazer as coisas fazem parte dele da mesma maneira. A mente humana, sua cultura e suas filosofias estão todas incluídas, juntamente com o melhor das ideologias sociais e políticas da humanidade. Ao lado dela deveríamos sem dúvida colocar as religiões do mundo, e entre elas aqueles pássaros manchados, o cristianismo mundano e sua “Igreja do mundo”. Onde quer que o poder do homem natural domine, existe naquele sistema um elemento que está sob a inspiração direta de Satanás. Se esse é o mundo, o que então é a salvação? Salvação significa que fujo dessa situação. Eu saio, realizo um escape daquele kosmosque tudo contém. Não pertenço mais ao padrão de coisas de Satanás. Coloco meu coração naquilo em que o coração de Deus está colocado. Tomo como meu objetivo Seu propósito eterno em Cristo, caminho para ele, e sou liberto deste. (Nee, p. 24 e 25)

 

II. NÃO AMEM O MUNDO NEM O QUE HÁ NO MUNDO

O mundo a que João se refere em 1Jo 2.15 a 17 é o mundo enquanto “sociedade organizada que se encontra em franca rebeldia contra Deus e seu reino” (Russel Shedd). Esse mundo odeia a Jesus Cristo e seus seguidores:

Se o mundo os odeia, tenham em mente que antes odiou a mim. Se vocês pertencessem ao mundo, ele os amaria como se fossem dele. Todavia, vocês não são do mundo, mas eu os escolhi, tirando-os do mundo; por isso o mundo os odeia – Jo 15.18 e 19

Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, pois eles não são do mundo, como eu também não sou – Jo 17.14

Em João a palavra kosmossignifica o mundo dos homens. João vê kosmossob vários aspectos, como por exemplo, o mundo dos homens separados do restante da criação (como sujeito Jo 1.10; 15.19; como objeto da ação divina Jo 3.16 e 4.42). Mesmo assim, é o mundo dos homens que é o aspecto determinante da totalidade da criação, notavelmente naqueles trechos que falam do enviar para o mundo ou do vir para ele (Jo 3.7,19; 9.39). Deus, pelo seu amor por este mundo envia seu Filho (Jo 3.16), não para julgar, mas para salvar (Jo 3.17; 2.47). Como “Cordeiro de Deus” tira os pecados do mundo (Jo 1.29; 1Jo 2.2). O kosmos(entendido como mundo dos homens) se constitui em sujeito uniforme, que se opõe a Deus em inimizade, que resiste a obra redentora do Filho não crê nele, e, na realidade, odeia (Jo 7.7; 15.18). É governado pelo príncipe do kosmos(Jo 12.31; 16.11), i.é, o Maligno (1Jo5.18). Apesar disto o Filho continua sendo o vencedor deste mundo (Jo 16.33).

Embora os crentes já não sejam condicionados pelo kosmos, não são removidos do mundo (17.15); pelo contrário, na medida em que eles (conforme diz a fórmula que recorre com frequência) permanecem “nEle” (i.é., no Filho), podem demonstrar no mundo sua crença no novo mandamento do amor e a prática dele (Jo 13.34-35). Quando a igreja cristã recebe a advertência de que ela deve guardar distância do mundo (1Jo 2.15), trata-se do mundo na sua transigência (v.17). A igreja deve se conservar livre do seu poder sedutor. Isto porque qualquer um que ama este kosmosi.é. que se entrega a ele, não tem participação no amor de Deus que se estende a ele, não sendo, portanto, capaz de amar conforme ele é ordenado no mandamento do Senhor. Isto porque assim como Deus dedicou seu amor ao mundo dos homens, enviando seu Filho, assim também a comunidade cristã é enviada ao mundo pelo Filho (Jo 17.18; cf. 20.21) para guardar sua palavra e mandamento (Jo 14.15-23).(Coenen & Brown, Vol 2, 2000, p. 2497-2502)

O que há no mundo?

Pois tudo o que há no mundo — a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens — não provém do Pai, mas do mundo – verso 16

Amar o mundo significa aceitar, aprovar e provar o que o mundo oferece. O mundo oferece o que ele tem.

No Grego clássico a palavra epithymia– desejo, cobiça – já se achava antes de Sócrates, especialmente em Heródoto. A partir do significado básico de se emocionar acerca de alguma coisa (thymos, “ímpeto”, “paixão”) já tinham o sentido de “impulso”, “desejo”. Na literatura grega secular a palavra aparece inicialmente no sentido neutro. Mais tarde, porém, tem um significado eticamente mau, porque a epithymia, como as demais três paixões – o medo, o prazer e a tristeza – resultam de uma falsa avaliação das posses e dos males desta vida.

No NT especificamente nos escritos de João, a origem do desejo é levada até uma fonte ainda mais antiga. Não tem sua origem meramente no homem, e, sim, no “mundo” (1Jo2.16), e, em última análise, vem do diabo (Jo 8.44). Aqui o “mundo” significa a esfera da inimizade contra Deus e Cristo, a esfera em que se reconhece a autoridade do “príncipe deste mundo”. O mundo seduz com “a concupiscência dos olhos e a concupiscência da carne e a soberba da vida (1Jo 2.16).

  1. A cobiça da carne

No NT na carta que Paulo escreveu aos Efésios, a carne com seus desejos está aberta aos desejos e influência do mundo, os quais, estes mesmos, não são carne e sangue (2, 2.3; 6.12). Em 2.11-12, sarxaparece com o aquilo que é temporário. De modo semelhante, em 1Pe 2.11 fala dos desejos carnais “sarkikos” que guerreiam contra a alma. Cristo sofreu na sua carne. Somente o homem que sofre na carne com o mesmo espírito de Cristo está livre do pecado (4:1-3) e escapa as depravações da carne (4:4-5).

O emprego bem diferente de sarxaparece nas passagens teológicas mais importantes, tais como Rm 5:5-8, que termina dizendo “os que estão na carne não podem agradar a Deus”. Nesta passagem a perspectiva mental da carne é hostil a Deus. Carne aqui avalia o homem como pecador diante de Deus. A perspectiva da carne é a perspectiva que se orienta para o próprio eu, aquilo que corre atrás dos seus próprios fins, numa independência autossuficiência de Deus.

2.  A cobiça dos olhos

A única ocorrência no substantivo ophtalmosno sentido abstrato se acha aqui em 1Jo 2:16. O emprego tríplice dos termos não visa tanto classificar os tipos de males que brotam do mundo, isto é, da humanidade caída. Visa pelo contrário, desmascarar as estruturas, caracteristicamente egoísta e a vida deste mundo, que somente o amor pode vencer.

3.  A soberba da vida

No NT na primeira epístola de João, a única ocorrência do substantivo alazoneia. O contraste com desejo da carne e dos olhos sugere que “a soberba da vida” significa a cobiça de vantagens e posição. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele. (1Jo 2:15). (Coenen & Brown, Vol 1, 2000, p. 524-526)

 

III. CONSEQUENCIAS DE AMAR O MUNDO E O QUE HÁ NO MUNDO

O mundo e a sua cobiça passam, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre – verso 17

a) Quem ama o mundo passa como ele passa

O mundo é efêmero. Tudo o que há no mundo se resume em tendências. O que é tendência hoje é démodé– termo de origem francesa, muito usado no mundo da moda para falar de algo que é antigo, velho, fora de moda e que não se usa mais.

O mundo usa critérios desumanos:

  1. Você vale o que você tem.
  2. Sua aparência importa mais do que a sua essência.
  3. O importante é causar uma boa impressão.
  4. Leve vantagem em tudo.
  5. Ser o segundo é ser um derrotado em tudo.
  6. Competitividade é a força motriz da vida.
  7. Acumular é tudo de bom.
  8. Seja o senhor do seu destino.

 

b) Quem ama o mundo jamais experimentará “qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” – Rm 12.2

Diferente do mundo e o que há no mundo que é efêmero aquele que faz a vontade de Deus permanecerá para sempre.

Daí se conclui que quem ama o mundo não experimentará a vontade de Deus, não fará a vontade de Deus e não permanecerá.

O verbo usado por Paulo em Rm 12.2 para expressar o sentido de experimentar é dokimázōque significa discernir, provar, aprovar, testar, examinar, colocar à prova, como se faz um examinador de metais para verificar sua resistência- 1Co 3.13 e 1Pe 1.7.

Trata-se de algo de natureza prática, ou seja, a experiência envolvida traz consigo uma noção de que o fiel irá perceber que a vontade de Deus passa nos testes de bondade, agradabilidade e perfeição. Assim, na medida em que o fiel é transformado pelo Espírito Santo mediante a renovação de sua mente ele passa a constatar que a vontade de Deus é sempre “boa, agradável e perfeita”.

João afirma que somente aquele que não ama o mundo, em quem o amor do Pai está, é capaz de fazer a vontade de Deus e assim permanecer, não sendo transitório como o mundo que flui e não possui consistência em si mesmo.

 

Comentário (1)

  1. Responder
    Eliel Silva de Oliveira says:

    Muito bom

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